Tinha acabado de chegar da Madeira duma viagem de sonho, mas
também exausta e extremamente cansada. Liguei dois dias antes com os meus
colegas na tentativa de os convencer que não era boa ideia ir com eles… que
provavelmente iria atrasar a marcha deles… Mas aconteceu o contrário, eles é
que me convenceram a ir que se seria bom e ainda bem porque no dia 07 de Julho
a hora combinada, 4h20 da manha eles estavam a minha porta para arrancarmos
para os Picos da Europa. Depois de nos reunirmos todos na estação de serviço do
costume la fomos nós.
Chegamos a Cain cerca das 10h00, o tempo de colocar as
mochilas nas costas e toca a andar sem perder mais tempo… Caminhamos durante
cerca de 5klm na Rute del Cares até chegarmos ao local onde iriamos descer até
ao rio e começar a nossa primeira ascensão desta atividade.
A subida do canal da Piedra Bellida não foi nada fácil mas
para meu espanto, eu já não sentia dores musculares, parecia que aqueles ares,
aquela beleza exercia sobre mim um efeito extremamente calmante e relaxante.
Fomos subindo muito lentamente, para além do desnível e declive serem
extremamente acentuados também íamos muito pesados com o material de alpinismo
necessário para que a atividade fosse um êxito. Passando o canal e chegando
acima da Amuesa paramos para consolar as vistas… Soberba paisagem com a qual
fomos brindados ao chegar ali… Paramos e descansamos um pouco, fui apreciando a
paisagem, sentindo a relva fofa debaixo de meus pés e sentindo um prazer
fantástico a invadir meu ser…
Voltamos a por pés ao caminho, achava eu e minha colega
Europa que já faltava pouco mas não… tínhamos apenas feito metade do percurso…
Pouco recomeçamos a nossa marcha sempre a subir e a neve a começar a aparecer…
Havia mais neve do que pensávamos…
Chegamos ao Refugio dos Cabrones cerca das 21h00 todos
cansados mas radiantes, tínhamos chegado… Na minha chegada ainda olhei para
Torrecerredo, sabia qual era o canal que tinha de fazer no dia seguinte… De
repente meu coração ficou apertado, o corredor estava cheio de neve e eu sentia
que o meu trauma dos neveiros ainda não estava totalmente curado…
Descansamos jantamos e fomos nos deitar o refugio estava
cheio…Já no meu cantinho muitas questões me surgiram e no meu “tête a tête” com
a montanha voltei a questionar, na tentativa de saber o porquê de tanta
felicidade e depois de tanta dor e tristeza…
Tola que eu sou!!! A montanha deu-me exatamente a mesma
resposta que já me tinha dado antes:
“ Então tu não sabes que a vida é como uma montanha? Sobes a
montanha sentes alegria e depois dor na ascensão dos sentimentos e chegas a
cume… Plena felicidade… E depois há que descer. Uns descem aos trambolhões (não
estavam preparados) e caiem, e é muito doloroso… Outros mais preparados vão
descendo lentamente com cautela certos de que quando chegarem la em baixo,
haverá uma outra montanha, e mais outra e mais outra e embora com altos e baixo
a felicidade se manterá sempre.”
Confesso larguei algumas lágrimas, na montanha as emoções
estão sempre muito a flor da pele, por mais forte que a gente pareça, a
montanha torna-nos sempre muito mais humildes e vulneráveis… Aconcheguei-me,
fechei os olhos e dormi nos braços de minha montanhas, feliz e maravilhada por
ali estar…
Dia 8 de junho levantamos não muito cedo eram cerca das
8h00, arrumamos nossas mochilas, tomamos um bom pequeno-almoço e la fomos nós.
O objetivo era subir ao cume de Torrecerredo. O aperto no fundo da barriga
continuava lá eu sabia que tinha de enfrentar aquele neveiro, embora subir,
trepar ou escalar não me fazia confusão, o meu problema é quando estou de
frente num neveiro com uma certa inclinação (e nos Picos todos tem muita
inclinação) e as pernas começam a perder força e as imagens da minha queda me vem
a memória, aquela sensação de perder pé numa fração de segundos ainda estava
muito presente… Fomos “guiados” pelo Aguia e ainda bem… Na sua análise do
terreno e sabendo ele do meu trauma, achou mais sensato optar por um canal mais
largo e menos empinado do lado esquerdo. Quando chegamos ao início da base da
Torrecerredo e na expectativa que minha colega não fizesse cume, pois o dia
anterior tinha sido muito duro e assim eu ficaria com ela e não enfrentava
aquele neveiro imenso e empinado que tinha de atravessar… Mas não a Europa
estava fantástica e quis fazer cume… Tinha de enfrentar esse medo que me
paralisava… Lentamente começámos a subir, intercalando homem e mulher. Eu ia
atrás do Galga Montanhas e a Europa atrás do Picos, o Aguia ia a abrir… Enfrentei,
segui as pisadas dos meus colegas, ouvi todas as palavras de apoio e força e
passei… Chegando a rocha, ai já ninguém me segura, sem qualquer problema…
Chegando ao cume a alegria foi imensa, fantástico chegamos todos, mas eu sabia
que a aventura não acabava aqui. O tempo passa e a gente embora saiba também
aprende que de facto por experiencia própria o sucesso de uma atividade só
acontece quando estamos todos sãos e salvos no refúgio…
Agora há que regressar, destrepamos sem problemas e quando
chegamos ao neveiro o Aguia mais uma vez acho mais sensato montar um rapel, e
ainda bem eu sabia que me sentia muito mais a vontade com um rapel… Senti,
varias vezes o vento a soprar forte e a montanha a dizer-me que estava na hora
de descer… Pedi-lhe um pouco de paciência que já estava a descer mas tinha de
ser sem stress algo devagar… Coincidência ou não o vento parou e desci, e
repetiu-se mais uma ou outra vez e pedi-lhe mais uma vez para se acalmar… E
deu-me ouvidos. A partir dali foi sempre a descer em direção ao Urriellu. No
meu silêncio sentia um aperto no coração pois mais um neveiro que sabia ainda
me assustava, já na descida para o Refugio do Urriellu.
Não disse nada a ninguém, tentei-me manter o mais calma
possível sem dizer nada a ninguém mas acho que todos eles se aperceberam… Já
mesmo na reta final o Aguia e o Galga Montanhas começaram a cantar, coisa que
eu faço sempre na montanha… e ainda não tinha soltado uma melodia se quer… Já a
acabar o neveiro atrevi-me sim e aceitei o desafio e comecei a cantar alto e
bom som “é uma casa portuguesa com certeza”… Chegamos felizes, beijos e abraços
a todos um olá bem caloroso ao Sérgio que diz se lembrar perfeitamente do grupo
e da tal Maria… ;). Festejamos numa mesa em volta de um chouriço, um copo de
vinho e uma coca-cola para o Aguia. Jantamos e fomos descansar todos orgulhosos
do nosso dia…
Dia 09 de junho, levantamos bem mais cedo a jornada era
longa. Uma última ou primeira foto do dia com o Sérgio e pusemos pernos ao
caminho rumo aos Horcados Rojos… Trilho que conhecia muito bem, memórias de há
dois anos atrás. Pessoas, paisagens que se encontravam na minha memória a cada
virada de uma montanha…. Mas embora tivesse ali muitos neveiros para atravessar
e claro sempre com algum receio, fui avançando sobre eles tentando, me
convencer de que tudo não passava de uma ilusão de minha cabeça. Passamos o Jou
sin Terre que recordo muito bem e claro, paramos como é habitual para comer
algo no Jou dos Boches. Resolvemos ir pelos Horcados, claro sempre a pensar no
meu trauma. Ir pelos Urrielles teria de caminhar num neveiro durante bastante
tempo sempre a mesma cota. Ora já todos se tinham apercebido que subir um
neveiro por mais empinado que fosse, e era, já não é problema nenhum, desde que
não olhe para trás…
Subimos os Horcados e chegamos ao Collado com o mesmo nome
num ápice… Daí e depois de cruzarmos um grupo de Americanos que por ali andavam
também e iam eles também para o Jermoso mas pelo trilho convencional, lá fomos
nós em direção ao Tesorero… Mais um neveiro de respeito e chegámos a base onde
deixamos nossas mochila. Trepada atras de trepada, umas mais áreas do que
outras mas fez-se muito bem… E maravilha, estávamos todos radiantes com o feito
e com as paisagens, sublimes… Aproveitei para registar o momento e tirar o máximo
de fotos porque no regresso já não poderia tirar tantas fotos… A descida como a
subida foi toda ela, destrepadas. Pegamos nossas mochilas e toca a descer.
Neste dia perdi a conta dos neveiros que tinha de enfrentar, o que mais me
preocupava é que sabia que a descida do Llambrion para o Jermoso pelo Tiro
Callejo não era nada fácil… Sabia que aquela parede estava virada mais a norte
e como tal as probabilidades de ainda ter neve fofa era muito grande. Fomos em
direcção ao Llambrion pela Collada Branca, nas pegadas de outros que já haviam
feito no dia anterior… Um neveiro enorme, lindo que se fartava e que com a
ajuda e apoio do meu Grande Mestre o Galga Montanha, venci sem qualquer problema… Chegando ao cimo
do Collado e espreitando pelo Tiro Callejo, a vista para o Collado Jermoso era
algo do outro, sublime mas mal sabia o que me aguardava… A descida daquela
garganta e com ajuda de corda que lá esta e no final um pequeno rapel pendular
de um ou dois metros mas o suficiente para impor respeito. Quando chego a base
da parede de neve que teríamos de descer, meu Deus minhas pernas sentiam-se
tremulas e algumas sensações voltaram a surgir… Montamos ali 2 rapeis de 60
metros para descermos e no meu caso montaram mais um terceiro que me ajudou a
chegar mais rápido ao Jou do Llambrion.
A partir dali ainda tínhamos muito que andar até chegar ao
refúgio mas já era tudo muito pacífico sem grande stress. Chegando ao refúgio a
nossa chegada foi notada, entre beijo e abraços, foram nos dados os parabéns
pelo feito pois os montanheiros que se encontravam no refúgio estiveram a
apreciar o espetáculo que estávamos a dar aquando da descida.
Depois de um pequeno descanso passamos à mesa e
deliciámo-nos frente de uma bela paella feita na hora para nós e mais 4
montanheiros que acabavam de chegar também… Não tive tempo de subir ao collado
e apreciar o famoso por do sol… mas fui apreciando e registando o por do sol
aquando da descida. Se por ventura sentia algo de estranho no fundo da barriga,
por outro lado sentia me radiante de todas as vezes que vencia e enfrentava o
meu medo… de todas as vezes que dizia a mim mesmo e a montanha… “ ó pá eu amo
te tanto que não vai ser uma queda que me vai afastar de ti… “ . Pensei muitas
vezes e se cair outra vez?!?! Só pedia
que se fosse, que fosse de vez e teria a morte mais feliz deste mundo.
Adormeci com um sorriso nos lábios, tinha voltado para o
Jermoso, naquele local respira-se a magia de um por do sol a queimar a
montanha, ouve-se o ranger das pedras a cair, como se fossem duendes a cantarolar
de contentes por nos terem ali… A magia do Jermoso está na perfeita comunhão
entre o céu e a terra, a luz e as trevas, o perfeito equilibra que se sente no
ser, quando repousamos no seu colo…
Dia 10 de Junho, podíamos e levantamos um pouco mais tarde,
não muito mas um pouco…
Tínhamos decidido na véspera alterar os nossos planos, a
neve demasiado fofa e as trepadas que deveríamos fazer para subir a Palanca
tornavam se demasiado perigosas para arriscar, resolvemos então descer para
Cain pela Vega de Sotin e apanhar um trilho muito pouco usado até Cain… A
descida já conhecia, foram destrepadas atrás de destrepadas, algo complicado
para quem trazia mochilas muito pesadas mas até tudo correu bem. O maior
problema foi atravessar um neveiro que não apresentava grande segurança mas não
tínhamos outra alternativa senão um a passar uma parte muito critica mas que
passamos com sucesso… Depois desse neveiro foi sempre a descer até Sotin uma
paisagem fantástica que eu já conhecia. Em Sotin um pouco mais abaixo entramos
numa floresta linda, o verde predominava, eu sentia me radiante tudo tinha
corrido muito bem, tinha enfrentado todos os meus medos afinal não foi assim
tão complicado… era só enfrentar… Na descida fui caminhando só, o percurso já
estava a maçar demais os pés mas a alma sentia-se leve, sentia me a mulher mais
feliz deste mundo, olhava para aqueles picos que agora se erguiam a minha
frente e a vontade de voltar e percorrer outros trilhos, outras áreas e subir
outros picos foi se tornando num próximo sonho que quero realizar… Pouco a
pouco o trilho começou a fechar-se e tivemos de descer a estrada, aí o Aguia e
o Picos foram buscar os carros enquanto a Europa, o Galga Montanhas e eu
fizemos um pic-nic a beira da Estrada… Regressamos são e salvos com o gostinho
de uma atividade muito bem-sucedida… Eu agradeço aquelas montanhas todos os
conselhos sensatos que ela me revelou, os olhos que ela abriu, a força que ela
me deu e retribuo o carinho com o maior respeito, amor e paixão que lhe tenho…
Agradeço também ao Galga Montanhas pela paciência, força e
carinho com que ele me ajudou a ultrapassar cada neveiro, agradeço a companhia,
a força e amizade da Europa e do Picos e claro não podia deixar de agradecer ao
Aguia que de atividade em atividade eu me sinto cada vez mais segura em o
acompanhar nestas atividades. Os pormenores, a sensatez e a sabedoria com que
ele aborda a montanha, nos transmitem de facto uma confiança inabalada…
A todos um bem haja e foi um privilégio caminhar a vosso
lado…
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