Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.
Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: - Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
- Entre!
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.
A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.
Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.
Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta angústia. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.
Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.
Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde: - Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.
Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada.
Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.
Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura emigram. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia.
O nome de Trasmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei.
Miguel Torga - Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)
FANTASTICO....
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6 comentários:
Grande tributo a Miguel Torga, um escritor que muito aprecio.
Namasté White Angel :-)
Querida Tia,
Meu escritor português preferido:).
Me revejo em muitos dos seus textos..;)
Namasté:)
Olá W.A.
Que esperavas dos transmontanos?
Tens que ir lá mais vezes, vais conhecer gente de aspecto rude,rostos queimados pelo frio e pelo Sol, mas com coração de Ouro.
Nasci em Bragança há 46 anitos e sempre que posso corro para lá. Aproveita e corre a Serra de Montesinho, Serra de Nogueira, Larouco e convive com os transmontanos ;)
Andas no bom caminho, acompanhada pelo Zé-Carlos, ele vai-te mostrar a beleza transmontana:
Boas caminhadas.
Bjs
Jorge,
Meu Amigo, ha seguramente 20 anos que convivo com transmontanos... O meu primeiro contacto foi com gente de Santa Maria de Emeres. Uma aldeia de Carrazedo de Montenegro em Valpaço, Aldeia onde não passava um so carro, linda, linda,linda... Apreciei muitas vezes a porca de Murça, senti vezes sem contas o perfume das pontes enfeitadas de flores de Mirandela e dormi noites a fio nos braços do "fabuloso" parque de campismo de Miranda do Douro...
Passei pelo fantastico Palacio/Hotel de Vidago, pelas aguas quentes de Chaves, banhei-me e dormi vezes sem conta nos Pisões. Namorei a noite da pequena aldeia de Vilar de Perdizes e brinquei nos leçois de neve de Montalegre...;) Sem esquecer o famoso castelo de Bragança no qual sonhei muitas vezes de olhos bem abertos.
Meu coraçao parou foi no tempo de uma serra bem la no cimo de Portugal, como os ninhos no cimo de uma arvore :).
Quanto ao coração deles... ja ha muito que não me enganam... gente boa... gente sabia... gente de coraçao leve...
Porque sera que eu acho que é um Reino Maravilhoso?
Nessas andanças para alem do Sr. Parente tambem cruzei com mais amigos comuns... mundo muito pequeno ou muito grande para os ter cruzado so agora:)
Bjs e fica bem.
PS: ainda não me esqueci do canyoning prometido;)
e ja agora Boas Descidas;)
eu sou duriense, como tal subscrevo todo este texto.
obrigada pela visita.
tive pena de não a conhecer no trilho do Sábado passado, em Valença.
gostei muito...
Angelina,
Tambem eu queria muito ir a essa caminhada e estar convosco e se tivessem mantido a data de 14 eu iria.
Infelizmente(ou nao) no sabado tenho formaçao e até fins de maio os meus fins de semana estão muito limitados....
Mas estou convicta que um dia destes a gente se encontra :) numa serra qualquer...
Beijinho
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